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Profª Simone Foyen

No dia 10 de março de 2.015 entrou em vigor a Lei nº 13.104/2015, que trata do feminicídio. Foram basicamente quatro alterações introduzidas a dois diplomas legais: o Código Penal e a Lei dos Crimes Hediondos.


Importante esclarecer que não foi criado um novo crime, mas sim circunstâncias que qualificam o crime de homicídio ou que majoram sua pena.


Esta Lei alterou o artigo 121 do Código Penal para incluir ao seu §2º uma circunstância qualificadora, qual seja, quando o crime for praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino.


O §2º-A foi introduzido como norma explicativa, que tem por finalidade esclarecer o termo "razões da condição de sexo feminino" e elenca duas hipóteses: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher.


A nova Lei acrescentou, ainda, o §7º ao artigo 121 do Código Penal, estabelecendo causas de aumento de pena se o feminicídio for praticado nas seguintes hipóteses: a) durante a gravidez ou nos três meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos ou maior de 60 (sessenta) anos, c) se o crime for cometido na presença de ascendente ou descendente.


Também alterou o §1º da Lei nº 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos, deixando claro que o feminicídio integra o rol do crime de homicídio qualificado, caracterizando, assim, uma nova hipótese de crime hediondo.


Não há como averiguar a nova Lei nº 13.104/2015 sem adentrarmos à esfera de abrangência da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).


A Lei nº 13.104/2015 faz referência à vítima mulher exclusivamente. Sendo assim, o homicídio só é qualificado quando, por razões da condição de mulher, a vítima é morta. Tal menção também é feita na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), porém há entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de reconhecer a violência doméstica em situações que envolva a violência de gênero (travestis, transexuais, relações homoafetivas masculinas, etc.). Como a Lei Maria da Penha visa tão somente a aplicação de medidas protetivas a fim de salvaguardar bens jurídicos de relevante valor para a mulher, em tese, não há qualquer empecilho para que sejam aplicadas tais medidas também para proteger os mesmos bens jurídicos dos homens.


Não obstante, para efeitos do crime de feminicídio, o sujeito passivo é sempre a mulher, não podendo o homem ser vítima desse crime por analogia, tal qual ocorre com a Lei Maria da Penha.


Por isso, a discussão que se estabelece em relação à Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) recai, sobretudo, na violência de gênero, de modo que referida Lei se aplica independentemente da orientação sexual das partes envolvidas.
Assim, para a configuração do crime de feminicídio, basta que a violência seja exercida contra a mulher, de acordo com os requisitos impostos pela nova Lei.


Desta forma, se a violência resulta de uma relação entre mulheres hetero ou transexual, aplica-se a qualificadora. Já se decorre de uma relação hetero ou transexual masculino, a qualificadora não se aplica.


A Lei foi clara ao se referir à mulher enquanto vítima do crime, de modo que não se admite o feminicídio se a vítima for homem, ainda que sua orientação sexual seja distinta da sua qualidade de homem, já que o sexo masculino não corresponde, neste caso, a sua identidade de gênero.


E não basta que a vítima seja mulher para caracterizar o crime de feminicídio: a morte tem que ocorrer em razão das condições de sexo feminino, ou seja, por razões de gênero (por discriminação ou menosprezo à condição de sexo feminino).
Em termos gerais o feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher.


As práticas de violência contra a mulher no âmbito doméstico ocorrem geralmente na clandestinidade e isso se deve ao fato de que ela acontece no âmbito privado, na intimidade dos relacionamentos, em que os agressores são pessoas de íntima convivência com as vítimas e, levando em consideração a privacidade familiar, a violência contra a mulher reflete uma seara de difícil acesso, porque a aprisiona ao desejo de seu agressor, que diante das constantes ameaças que é submetida, estabelece com ele uma espécie de pacto do silêncio, que somente se rompe quando a violência alcança níveis extremos de maldade e barbárie.


Por isso o feminicídio, precedido por outras formas de violência a que são submetidas às mulheres, tais como abusos físicos e psicológicos tendentes a submetê-las a dominação masculina, representa a última etapa de um ciclo de violência que leva a mulher à morte.


Como acertadamente definiu o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher (CPMI) do Congresso Nacional:
"O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante."2 .


Não há como negar que a Lei nº 13.104/2015 visa proteger a mulher vítima de violência de gênero, que representa “uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos3 .


Homens e mulheres, ainda hoje, são educados de forma diferenciada em uma sociedade machista e patriarcal, em que os papéis são bastante distintos e delimitados: o homem é o provedor e a mulher segue rituais de entrega, controle das suas vontades, recato sexual, etc., geralmente priorizando questões domésticas e voltadas à maternidade. Tais diferenças inserem a mulher numa relação desproporcional de interdependência em relação ao homem, submetendo-a à autoridade quase que hierárquica ao seu companheiro.


Da perspectiva das relações humanas, tal panorama cria condições para que o homem se sinta legitimado a satisfazer seus anseios pelo uso da violência e nos permite compreender o motivo pelo qual um grande número de mulheres vítimas da violência doméstica se mantêm caladas e submetidas a seus agressores, mesmo após inúmeros episódios de violência.


Por tais fatos, a tipificação penal do feminicídio deverá contribuir para que as diferenças entre os sexos, construída culturalmente ao longo dos anos, seja gradativamente desfeita, tornando possível que homens e mulheres assumam papéis distintos na sociedade, sem que a tais papéis sejam atribuídos pesos com importâncias diferenciadas.


O debate que se inicia agora é: qualificar o crime de homicídio contra a mulher levando em conta sua condição de mulher e elevar tal prática a configuração de crime hediondo reduzirá os números de homicídio contra mulher? Ou, mais uma vez, estamos diante de uma lei simbólica, sensacionalista e populista?

Profª Simone Foyen

Advogada. Assessora e professora na Escola Superior de Gestão e Contas Públicas no Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

Mestre em Políticas Sociais pela Universidade Cruzeiro do Sul – Unicsul/SP.


  2 - BRASIL, Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher (CPMI) do Congresso Nacional, 2013, p. 1003
  3 - TELES, Maria A. de Almeida. MELO, Mônica. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense: 2002.


Os artigos aqui publicados não refletem a opinião da Escola de Contas do TCMSP e são de inteira responsabilidade dos seus autores.