Avaliação do Usuário

Estrela ativaEstrela ativaEstrela ativaEstrela ativaEstrela ativa
 

*Moacir Assunção

São Paulo, poucas vezes em sua história de mais de 400 anos, viveu algo tão intenso e terrível em suas consequências quanto a Revolução de 1924. Ocorrida entre os dias 5 e 28 de julho daquele ano, o episódio causou a morte de 503 pessoas – de acordo com dados oficiais, embora outros cálculos apontem para pelo menos o dobro – e ferimentos em quase 5 mil. De uma população de 700 mil paulistanos na época, cerca de 300 mil deixaram a cidade, refugiando-se em municípios vizinhos, no interior e até mesmo em outros Estados. Transportando esses números para os dias de hoje, seria como se algo perto de seis milhões de habitantes da metrópole a abandonassem, algo absolutamente improvável. Somente como um parâmetro de comparação, nos feriados prolongados, pouco mais de 1,5 milhões de paulistanos deslocam-se da cidade em direção às praias ou ao interior do Estado.

 

 

Durante aqueles tenebrosos dias, canhões franceses de alta tecnologia, de propriedade do governo federal, sob o mando do então presidente Arthur Bernardes, atiravam de hora em hora contra a cidade, matando civis inocentes, destruindo casas e fábricas e causando o caos na cidade. Tanques de guerra, vindos de trem do Rio de Janeiro, capital federal da época, foram usados pela primeira vez no Brasil. Aviões de combate também percorreram os céus de São Paulo, jogando bombas de 450 quilos sobre a cidade.

Os inimigos do governo federal eram os chamados revoltosos – soldados e oficiais do Exército sediados na capital e membros da Força Pública (atual Polícia Militar) que integravam a segunda rebelião tenentista da história do Brasil. Os rebeldes, conhecidos na historiografia como tenentes por integrarem na maior parte essa patente militar, pretendiam tomar a cidade para, a partir daqui marchar contra o Palácio do Catete, no Rio, e derrubar Bernardes. Apesar destes serem os inimigos, a população civil é que foi a grande vítima dos ataques das tropas federais.

Os rebeldes estavam no Centro, ocupando o atual quartel da Rota, na região da Luz, e a estação de trem do mesmo nome, mas os lugares visados pelas bombas e tiros de canhão eram o Brás, Mooca, Cambuci e Belenzinho, os principais bairros operários de São Paulo, onde se concentravam os trabalhadores das fábricas, quase todos italianos, espanhóis e brasileiros pobres, boa parte dos imigrantes recém-chegados ao País.  Postados em frente à atual Igreja da Penha e nas colinas da Vila Matilde, locais de topografia alta, os bólidos franceses, com capacidade para atingir alvos a 16 quilômetros de distância, não deram trégua à população, que foi forçada a recorrer ao saque para não morrer de fome e sede. Boa parte dos infelizes que permaneceram na cidade sobreviviam em porões, muitos comendo ratos, pombas ou o que aparecesse.

Por que isso ocorria? A razão do bombardeio indiscriminado, que chegou a matar nove integrantes da família Vazotto, de imigrantes calabreses na Mooca, é que o governo de Arthur Bernardes utilizou um método no mínimo discutível – para dizer o mínimo – de enfrentar rebeliões militares: o bombardeio terrificante, em que os tiros são disparados sem alvo preciso, exatamente para aterrorizar. Os exércitos alemães haviam usado este método cruel na I Guerra Mundial, o que levou à condenação da iniciativa pelos principais juristas da época. Assim, dois terços dos mortos e feridos da Revolução de 1924 eram civis, da mesma forma que praticamente a totalidade dos que fugiram da cidade.

Os rebeldes pretendiam derrubar o presidente e, para isso, se apossaram de quartéis do Exército e da Força Pública, amparados por colegas que se rebelaram nestes locais. A ideia era construir um poderoso Exército que, deslocando-se de São Paulo para Barra de Piraí, no Rio, levasse à derrota de Bernardes. Cercados logo em seguida à sua ação, no entanto, foram forçados, no dia 28, depois de combaterem por duas semanas na cidade, a fugir para o interior, o que gerou, depois da junção com as tropas gaúchas do então capitão Luiz Carlos Prestes, a famosa Coluna Prestes, que percorreu 25 mil quilômetros de boa parte dos Estados brasileiros pregando a chama da revolução e a derrubada de Bernardes, cujo governo praticamente inteiro se passou em estado de sítio.

Os bairros operários, a região central e boa parte do Ipiranga estiveram envolvidos nesta epopeia, ainda lembrada pelo monumento da luz elétrica na Rua João Teodoro, ao lado do quartel da Rota da Avenida Tiradentes – em cuja estrutura ainda há estilhaços de bombas – e do anjo maneta que perdeu a mão durante os combates na Igreja da Glória no Cambuci, tomada e retomada pelas tropas legais em sangrentos combates contra os revoltosos. No entanto, quando se fala em revolução em São Paulo, os paulistas ainda pensam na Revolução Constitucionalista de 1932, cuja memória é muitas vezes mais forte na historiografia paulista. A Revolução de 1924, por sua vez, permanece, mais de 90 anos após sua eclosão, como uma ilustre desconhecida na história da cidade.

Um simples confronto de números, entretanto, demonstra a diferença de potencial destrutivo entre os dois episódios históricos. A Revolução de 1932, lembrada na Avenida 9 de julho, no anual desfile dos veteranos e no Obelisco do Ibirapuera, matou 634 paulistas em dois meses de combate. Na de 1924, por sua vez, foram 503 em apenas 23 dias. Basta observar isso para perceber qual foi a mais dolorosa para a população.

Contar essa história melhor, inclusive com depoimentos de pessoas que viveram o drama de ter suas casas destruídas pelos covardes bombardeios e tiros de metralhadora, nos fará perceber a importância de preservar a paz e a tranquilidade, de forma a resolver nossos problemas de forma pacífica e tranquila, nos levando à valorização da paz. Ao mesmo tempo, ajudará a entender melhor os anos 1920 e sua relação com a história do Estado de São Paulo. Como diz aquela máxima: “um povo que não conhece o seu passado, está condenado a repetí-lo”.

 

*Moacir Assunção é mestre em História Social pela PUC-SP, jornalista com passagens pelos jornais O Estado de S.Paulo, Diário Popular e Jornal de Brasília, pós-graduado em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política e professor da Universidade São Judas Tadeu (USJT). Também é autor do livro São Paulo deve ser destruída – a história do bombardeio à capital na Revolta de 1924 (Record, 2015), finalista do Prêmio Jabuti edição 2016, e assessor no gabinete do conselheiro Edson Simões no Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP).


Os artigos aqui publicados não refletem a opinião da Escola de Contas do TCMSP e são de inteira responsabilidade dos seus autores.